quinta-feira, 19 de setembro de 2013

O milagre de Francisco e o caminho para a Libertadores

Nunca diga que um Papa não pode fazer milagres, muito menos perto de um hincha do San Lorenzo de Almagro. É bem verdade que as relações entre futebol e religião são apenas simbólicas (será?), mas não podemos negar que as forças divinas estão fortemente atreladas ao esporte e sempre o acompanhou.

San Lorenzo homenageou o Papa no uniforme principal
O fato é que desde a eleição do pontífice Francisco I, torcedor ilustre e de carteirinha do clube de Boedo (sócio número 88.235), o San Lorenzo atravessa uma ótima fase nos campeonatos nacionais. Terceira colocada no Torneo Inicial, a equipe classificou-se na última quarta-feira para a final da Copa Argentina.

A batalha não foi fácil, mas a equipe comandada por Juan Antonio Pizzi venceu o Estudiantes de Caseros nos pênaltis (5 a 4), fora de casa, após o empate em 1 a 1 no tempo regulamentar. Agora, o Ciclón espera a definição do confronto entre Arsenal de Sarandi e All Boys para conhecer seu adversário na decisão. A semifinal será disputada no dia 2 de outubro.

De quebra, os cuervos estão próximos de conquistar o primeiro título desde 2007 e retornar à Copa Libertadores após quatro anos de ausência. A última participação azulgrená no torneio havia sido em 2009, quando aquele equilibrado plantel decepcionou e ficou na lanterna da fase de grupos, com seis pontos conquistados.

Ninguém no bairro de Boedo nega: o objetivo do clube para o próximo ano é a América. E caso a meta seja alcançada, haverá mais um motivo para a diretoria do San Lorenzo construir uma estátua do Papa Chico no estádio Pedro Bidegain, já que o time também livrou-se do rebaixamento na última temporada - coincidentemente (ou não) depois de o pontífice assumir o cargo mais importante do catolicismo.

FICHA TÉCNICA - Semifinal:

San Lorenzo: Torrico; Buffarini, Alvarado, Gentiletti, Mas; Kalinski, Navarro; Piatti, Ruiz, Elizarri; Villalba. Técnico: Juan A. Pizzi.

Estudiantes: Ríos, Alvarez, Gásperi, Tavio, Montero; Serrano, Loria, Galván; Britos, Yassogna, Delorte. Técnico: Oscar Blanco.

Estádio: Centenário de Chaco (Resistência, Argentina).
Árbitro: Sergio Pezzotta.
Gols: 13' Buffarini (San Lorenzo), 55' ST Delorte (Estudiantes).

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Crônica: Torcedor de carne e sangue

A tarde ensolarada daquele domingo prenunciava mais um dia na rotina futebolística de Nicolás González, carinhosamente conhecido em suas bandas como El Pipa, ou só Pipita, para os mais íntimos.

O jogo, a rigor, não valia nada. Era apenas um destes confrontos para se cumprir tabela. No entanto, há sempre algo de especial em ver seu time dentro de campo, sobretudo porque "a mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana", como definiu Nelson Rodrigues.

Vestindo sua insubstituível e surrada camisa alvirrubra, Pipa seguia religiosamente a liturgia há décadas praticada pelos integrantes de sua família antes de sentir a vibração de uma partida. 

Aliás, são tantos anos de vivência naquelas arquibancadas de concreto que já não se sabia quem sentia quem. Talvez até a própria cancha soubesse da presença de seu fanático torcedor tamanha a ligação entre os dois.

E não era para menos. O sangue de Pipita escorria literalmente por aquelas grades e regava o gramado cheio de irregularidades. Por morar num bairro marcado pela forte imigração, ele participou de modo direto da reconstrução do estádio, que havia sido erguido por seus próprios antepassados operários.

Tais empenhos resultaram em suor e sangue, sendo que este muitas vezes rompia-lhe a pele em razão de precária segurança com a qual trabalhava. Mas outro elemento importante também sustentava a edificação: as lágrimas que caíram nas derrotas e se misturaram à composição do material.

Pipa canta nos muros e nos alambrados, interagindo com o estádio como se ele fosse sua extensão

Dados os ingredientes que formam nosso palco, resta-nos saber que três horas antecedendo o apito inicial bastavam para Nicolás encontrar os amigos, apreciar sua cerveja e resenhar sobre aventuras passadas. 

"Lembra aquela semifinal quando viajamos o país inteiro para ver o técnico retrancar o time? E ainda saiu briga...", relembra um torcedor de invejável memória. Na verdade, a única lembrança inexata deste "hincha" remetia à quantidade de vezes que ele lutou para impedir que desprestigiassem as cores pelas quais vive.

Mas é claro que El Pipa se recordava daquele embate. Cada partida é para ele como um filho. Desde o apito inicial que simboliza o parto até a morte decretada pelo último sopro do juiz - esta persona non grata sem identidade que assombra todos os continentes. Claro, também havia memórias dos confrontos diante seus exatamente iguais e opostos, os rivais alvinegros que viviam do outro lado da cidade.

O jogo, entretanto, não era contra eles. Então, o fundamental é saber que mais um filho de Pipa estava prestes a nascer. Preparado com bandeira, faixas e sinalizadores, Nicolás mal podia esperar para conhecê-lo. 

Foi com esse objetivo que ele realizou todo o ritual do fim de semana, começando a partir do momento em que a camisa desceu-lhe os braços e cobriu-lhe o peito desnudo até o primeiro passo no imundo chão do estádio.


Pipa se confunde com as cores do próprio estádio

Poucos metros após as catracas que Nicolás havia ultrapassado, começavam a impregnar-se junto aos seus tênis castigados pelo tempo pedaços de papel higiênico, odores de líquidos diversos, cascas de amendoim e bitucas de cigarro. 

Ah, e o cheiro inconfundível de urina exalava fortemente dos banheiros, mas ninguém parecia incomodar-se com isso. Afinal, nada poderia atrapalhar este casamento sagrado entre o homem e seu time no mais sagrado dos templos. Ao entrar pelos portões enegrecidos pelas intempéries, Pipa rumou à sua esquerda, onde se encontravam em cantoria seus irmãos de futebol.

Com a bola rolando, o time da casa não demonstrava o esforço de outrora, para a loucura do nosso protagonista. Até compreensível o fraco ritmo da equipe, digamos. De que adiantava o sacrifício ao final da temporada se nada havia em disputa?

Porém, do outro lado da história, bem atrás de uma das metas, Pipa vivia intensamente a partida em cada segundo, em cada roubada de bola e deixou mais do que sua voz nas tribunas: deixou alma e coração.

Interagindo com sua casa, aquele local onde não existe nada mais além do fervor da paixão, ele torceu como nunca dantes visto. Talvez porque pressentisse o que estaria por vir: a apunhalada mortal pelas costas.

De repente, após anos de devoção incondicional, Pipa foi traído de modo súbito por quem ele menos esperava. Movido por interesses que já não cabiam às suas modestas raízes, o clube desapropriou-se do quase centenário estádio para construir uma arena (!) - destas em moldes europeus, faraônicas e genéricas. E este novo projeto não admitia a existência de torcedores como ele, humildes e fieis.

Abatido, sem reação, Nicolás ainda lutaria contra o sistema com todas as suas armas, porém seus esforços de nada adiantarão. O projeto irá concretizar-se e levará abaixo o antigo estádio no qual ele viveu, para o qual ele viveu e o qual ele viveu. Melancólico fim para tantos Pipitas que encontram apenas uma paixão durante a vida.

Nicolás nunca mais viu seu time em campo depois da concretização deste episódio. Agora comportando apenas clientes sentados e orquestrados por uma organização descabida - meros espectadores - o novo estádio vive sem vida, sem palpitação, sem história. 

No entanto, isso não é o mais agravante. Com o resultado deste crime ao patrimônio local, a arena agora vive também sem identidade. Vive sem paixão. Vive sem Pipita, que não vive mais.

Futebol moderno matou nossos Pipitas